Cancelamento e a pasteurização do discurso

André Sobreiro
André Sobreiro
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3 min readAug 10, 2020

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Eu já queria começar falando que não gosto da cultura do cancelamento. Esse fenômeno tão comum ultimamente em redes sociais me desagrada por algumas razões.

A primeira delas é pelo fato de ela não permitir diálogo. Fez algo “errado”? Tá cancelado. Suas desculpas são falsas, suas tentativas de aprender sobre o tema são vazias e só para agradar o público das redes sociais, não merece segunda chance. Ok, isso tudo pode acontecer, mas tem como eu ou você afirmarmos que a pessoa está CAGANDO para o erro e só fazendo cena?

Se você pegar tweets meus de alguns anos atrás, não precisa nem ir muito longe, vai encontrar preconceitos a rodo. Aliás, se você do futuro olhar meus tweets de 2020 também vai encontrar. A sociedade evolui (ainda bem!) e nós, como pessoas também. Aprendemos coisas novas, aprendemos mais e mais a respeitar ao outro. Pelo menos isso é o básico, se você não faz, que ser triste.

E a cada aprendizado, vamos deixando preconceitos para trás. A partir do momento que uma pessoa é cancelada, ela perde esse direito Errou, tá errado. Isso, claro, aos olhos de quem cancela. O que entra no meu segundo ponto.

Eu consigo agora, de cabeça, listar uns cinco defeitos bem feios meus. Rapidinho. Ao cancelar alguém você automaticamente se coloca em um local de soberba, de superioridade moral. Eu tenho os skills para ser considerado impecável o bastante para te julgar e te cancelar. É de uma pedância (e olha que pedância é um dos itens da lista que acabei de fazer dos meus defeitos) gigantesca. Todos temos teto de vidro. E isso é uma afirmação. Todos temos. Será que você tem essa envergadura moral toda para sair cancelando alguém? Pergunta retórica.

E isso tudo leva a um fenômeno que tem me incomodado bastante. O medo de ser cancelado está pasteurizando as conversas, os debates. Vamos a alguns exemplos. Esses dias vi um debate sobre o fim da meia-entrada e uma pessoa que disse não achar meia-entrada a melhor solução para o acesso cultural foi automaticamente taxada “de direita”. Como se as alternativas para o tema fossem: quem gosta de meia-entrada é a favor de cultura para todos e quem não gosta é elitista. Eu conheço alguns vários artistas bem engajados com causas progressistas que não acham o formato atual o melhor modo de difundir cultura. Mas é fora do binário, né? Então tem que defender a meia-entrada e FIM.

Isolamento e distanciamento social então, a coisa ganha camadas ainda mais grotescas. A simples possibilidade de debater o tema, de pensar em redução de danos já anda colocando as pessoas como “cúmplices pela morte de 100 mil pessoas”. E quem tá fora desse pensamento é “um sofredor que está se privando de viver sendo trouxa” que só falta pedir a medalha de honra ao mérito publicamente.

Dia desses alguém disse “já estão usando a carta da saúde mental” como algo depreciativo, algo digno de cancelamento. Olha, não sei vocês, mas minha saúde mental é algo bem importante para eu me manter vivo, viu?

E a pressão em nome de um lado dito progressista (que costuma ser bem carola e moralista) acaba criando pessoas com medo de emitir suas opiniões. Com medo de debater sobre as coisas. E como em rede social todo mundo quer opinar sobre tudo, acaba só repetindo o discurso médio que está rolando, sem a menor reflexão das muitas nuances que existem. Pasteurizado.

Uma coisa que eu aprendi ao longo desses anos é que eu só cresci e evoluí com debate, com troca de informação e de conhecimentos. Que erramos todos e acolher isso que é algo aparentemente óbvio, cria ambiente seguro para o outro aprender e crescer. Não sei vocês, mas pra mim é melhor ver pessoas evoluindo como seres humanos do que eu ser o poço da razão.

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André Sobreiro
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Vivo de internet e cultura! Edito esse blog, o Salada de Cinema e muito mais coisa por aí!